Ontem escutei o relato de uma menina, de que em uma postagem sua nas redes socais, onde lamentava a morte da própria mãe, vítima da pandemia, um admirador do presidente Jair Messias Bolsonaro, tomado de completa fúria, a acusou de estar difamando o mandatário e disse que a morte de sua mãe era algo merecido. Ela dizia não saber o que faz uma pessoa nutrir tanto ódio.
Eu também não saberia, mas apostaria em impunidade. A crueldade da Extrema Direita brasileira tem apavorado o mundo. Um amigo meu, morador na Europa, afirmou que a impressão que os europeus têm do Brasil é de que estamos em transe, completamente incapazes de perceber a gravidade do momento.
Segundo o meu amigo, enquanto os europeus se escandalizam com as falas do presidente e principalmente com os discursos de seus apoiadores, eles se questionam da passividade nacional diante do horror quotidiano.
A impunidade que os cerca, entretanto, seria uma explicação viável para a crescente agressividade dos seus discursos. Ser licencioso diante de discursos de ódio, é adubar ainda mais a sensação de que não há limites para o que se prega.
Os extremistas brasileiros nunca se sentiram constrangidos em festejar publicamente quando Lula, preso, quase teve seu direito inalienável de despedir-se do neto falecido, negado.
Houve comemoração durante o enterro de Arthur Araújo, de apenas 7 anos, vítima de meningite meningocócica. No inicio o discurso era camuflado de exigência parda de justiça. Entretanto, dias depois, em março de 2019, uma carreata festejou a morte da criança e a nação assistiu impassível.
Dois anos antes, em março de 2017, o doutor Richam Faissal, neuro cirurgião do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, foi ainda mais festejado publicamente quando sugestionou sabotar o socorro à ex-primeira dama Marisa Letícia, e mata-la na mesa de cirurgia.
Vítima de AVC hemorrágico, Marisa acabou falecendo de consequências do próprio derrame, e uma comitiva de pervertidos foi ao hospital soltar foguetes assim que seu falecimento foi confirmado. Aproveitaram-se entretanto, para fazer uma inacreditável homenagem ao médico.
Faissal recebeu até um cartaz comemorativo. O Brasil, entretanto, emudeceu.Em 2016, durante o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef, a nação também observou silenciosa às cenas de um morador de Copacabana, participante de uma “marcha contra o comunismo e pela liberdade”, esbofeteando um menino negro de apenas 11 anos, acusado de furto.
Uma moça, também assustada com a “ameaça comunista”, branca e bem vestida, propôs ali a justiça da Classe média branca em defesa da sua liberdade: linchamento. “Tem de matar” gritava ela repetidamente.
Em 2014, um outro show de atrocidade made in Brazil: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi festejado nas ruas quando, em uma audiência da Comissão Estadual da Verdade em São Paulo, tal qual um oficial nazista, mostrou-se rígido e não arrependido de ter torturado e matado dezenas de pessoas.
Ustra foi inclusive homenageado como um “visionário” por ter torturado incessantemente uma grávida de 7 meses. Igualava-se ao “Açougueiro de Lion”, Klaus Barbie, que em seu julgamento não mostrou nenhum arrependimento por matar crianças francesas à pauladas.
A diferença fundamental é que Barbie, apesar de ser um grande queridinho da CIA, nunca passou a ser uma estampa de camisetas tal qual um souvenir de Art Pop. Pelo contrário, tanto nos Estados Unidos, quanto na Alemanha e França, o oficial da SS sempre provocou asco.
Já o rosto de Brilhante Ustra, por exemplo, está nas camisetas usadas pelos deputados federais Carlos Jordy e Eduardo Bolsonaro, ambos do PSL. Os dois as ostentam dia e noite e não mostram constrangimento. No Brasil, afinal, não há um limite.
O país se acostumou a horrores. De maneira forçada, é verdade: a cabresto, à pauladas, à tortura, mas enfim se acostumou. Se acostumou à base de telenovelas medíocres, filmes americanos pró-Washington, músicas populares sem conteúdo, reality shows imbecilizados, mas enfim, se acostumou.
Passou o tempo em que havia das pessoas, ou das Massas, uma resposta natural a este tipo de abuso cognitivo do horror. O sentimento de injustiça, por exemplo, levou milhões de pessoas às ruas quando do suicídio de Getúlio Vargas. Claro que este sentimento poderia ter vindo antes, durante a crise perpetuada por Carlos Lacerda, mas bem ou mal, a verdade é que a avalanche popular nas ruas estancou o Golpe militar que eclodia na manhã de 24 de agosto de 1954 e o protelaria por uma década.
Os pobres do país, abraçados por Vargas e por sua política econômica intransigente na defesa do patrimônio nacional, se sentiram feridos quando da sua morte e impuseram limites aos golpistas que há semanas desestabilizavam o governo e provocavam alta nos preços e nos alugueis.
Os militares, parte da conspiração que o derrubaria, viram a impossibilidade do Golpe nas ruas. Os tanques recuaram diante dos pedestres e seus estilingues rapidamente, e por um momento, golpistas como Castelo Branco, Mascarenhas de Morais e Roberto Marinho foram objeto de ódio nas ruas.
Carlos Lacerda, por exemplo, famoso por ser o propagador de boatos e notícias falsas, teve de esconder-se por duas semanas. Digamos que naquele momento, um completo sentimento de aversão tomou conta do país.
No entanto, no Brasil atual, foi determinante para a sensação de impunidade, o discurso golpista desencadeado por Aécio Neves, na eleição presidencial de 2014. Aécio institucionalizou tudo aquilo que havia emergido no fim de junho de 2013.
É bom que a História não esqueça: se há alguém que é diretamente responsável pela desgraça que vivemos, é o deputado federal, infinitamente acusado corrupção, Aécio Neves. Durante sua campanha presidencial, foi ele o maior gerador de conteúdos de ódio, ameaças de Golpe, alarmes de fraude e todo o tipo de elemento para a instabilidade política e econômica.
No entanto, mesmo derrotado nas urnas, ele tornou-se o herói momentâneo de movimentos de Extrema Direita como o MBL, que hoje, apoia João Dória. Aécio, se utilizando da tribuna no senado, continuaria aumentando o tom até abril de 2016, quando Dilma sofreu impeachment, naquilo que um dia os livros mostrarão ser uma das maiores conspirações da História nacional.
Nunca houve um repúdio nacional contra os conteúdos falsos publicados pelos apoiadores de Aécio Neves, é bem verdade. A vitória de Dilma nas urnas, seguida de sua derrota no âmbito social, dialogaram com um ato declarado do que viria: na noite da apuração dos votos, que garantiria a vitória de Dilma Roussef, em Belo Horizonte uma carreata de caminhonetes e carros de luxo pedia a recontagem dos votos.
Centenas de automóveis buzinavam e seus tripulantes chamavam a candidata do PT de “comunista”, “vagabunda” e “assassina”. Acuada, Dilma prometeu governar para os que não votaram nela. Foi a senha para liberar o vírus no hardware das instituições democráticas: tal qual a Lei da Anistia de 1978, que simplesmente salvou os torturadores do Regime Militar, Dilma dava um sinal de paz para a escória golpista.
A mesma Classe média branca e revoltada de 2013, anti-PT, tinha agora um presente quase passado, Aécio Neves, e também um futuro: Jair Messias Bolsonaro. Netos espirituais dos torturadores anistiados em 1978, os golpistas de 2013 assumiram para si um movimento que começou nas ruas por justiça no transporte coletivo, e terminou tentando derrubar Dilma Roussef.
Entre maio de e junho de 2013, houve uma completa metamorfose nos movimentos de rua, e que se pode explicar pela incapacidade da Esquerda burocratizada de analisar a revolta das ruas. O problema é que a Classe média branca que comandaria o movimento em seguida, é politicamente ignorante e não conseguiria conceber que o ódio gerado não se esgotaria.
Ele cresce sendo adubado justamente pelo que mais gera: ódio. Daí, entenda-se, a ascensão de Bolsonaro e de seu exército de aberrações que viria a seguir. Não houve desde então, uma catarse nacional sobre o que foi gerado ali. Me orgulho, entretanto, de dizer que em junho de 2013 eu antevi, com lucidez, um Golpe de Estado.
Por fim, cabe aqui, ainda, uma recordação, e que não pode passar despercebida: a velha tradição da política brasileira de evitar rupturas que coloquem em xeque o domínio da grande burguesia ou dos grandes detentores de poder econômico. Isto sempre permitiu uma ressignificação criminosa do passado, baseada na significação tradicional da narrativa.
Explico: as feridas nacionais foram todas suturadas através de pontos cirúrgicos emergenciais, que visavam salvar o organismo social sem, entretanto, mexer na própria doença. A nossa transição para um Império, por exemplo, em 1822, foi feita através de acordos econômicos com parte das antigas elites coloniais e mediada por um príncipe português.
O fim do sistema monárquico e a mudança para uma tardia república não significou, por exemplo, o fim do poder das antigas aristocracias rurais e escravagistas. Criou-se no Brasil uma prática política criminosa, onde o povo é apartado do processo e as Elites acondicionam a nova realidade à suas antigas necessidades.
Daí a previsível impunidade para seus defensores (vide o teto que publiquei aqui no dia 3 de março, onde trato da impunidade aos colaboracionistas de Bolsonaro). Portanto, para mim, fica muito claro que o discurso de ódio só se prolonga em um ambiente brutalizado, no qual aparentemente, há uma permissividade sem fim para suas ideias.
O crescimento do absurdo político no Brasil se faz por uma incapacidade completa da sociedade de reagir a ele, o que sugere libertinagem ou apoio. Antes mesmo das instituições, e que por uma demanda social, não podem estar em todos os espaços ao mesmo tempo, deve haver um repúdio da coletividade.
Não podemos tolerar que um grupo de pervertidos festeje a morte de uma criança de 7 anos vítima de meningite e nem solte foguetes, ao comemorar a sugestão de um médico de permitir a morte de uma paciente. Da mesma forma, a ojeriza geral deveria ter considerado inaceitável um candidato a presidente que na falta de propostas claras, ameaça acabar com reservas indígenas, com propriedades de comunidades quilombolas, e metralhar desafetos políticos, além é claro de ameaçar que se for derrotado nas urnas, colocará o sistema em risco com apoio de tropas militares.
Como nada disto aconteceu, e Jair Messias Bolsonaro acabou eleito, e portanto absolvido. Para o mundo ficou tácito que aqui vale tudo, e a quem se utiliza do vale tudo, ficou claro que não há limite algum para nada.
Fabiano da Costa.
Professor de História
Fonte: https://www.facebook.com/fabiano.dacosta.7